Devia ser próximo de cinco da tarde e o sol já começava a cair quando resolvi encarar mais uma bifurcação que parecia seguir em direção ao rio. Já não dava pra pedalar, mas a bicicleta passou a cumprir um papel um tanto especial de abrir o mato que se fechava progressivamente. Ainda que a trilha pouco demarcada e a paisagem parcialmente devastada me sugerissem que não encontraria água limpa, ainda queria insistir em chegar até o barulho que corria em algum lugar. Ainda que esse lugar fosse o meu subconsciente.
Dois Mil e Dezesseis foi um ano realmente curioso na formação da minha consciência astrológica. De um dia para o outro, sem uma razão específica, comecei a procurar água por todos os lugares. Quando estava pedalando na cidade, usando a bicicleta como mobilidade entre um compromisso e outro, regularmente parava sobre as grades dos bueiros entreabertos para ouvir e assistir ao movimento dos rios asfaltados. Ficava encantado em perceber a força das águas aprisionadas pelos caixões de concreto. De onde elas vêm. Para onde elas vão.
Foi nesse período que me disseram que todo signo responde à um elemento. Capricórnio, Virgem e Touro são Terra. Aquário, Libra e Gêmeos são Ar. Áries, Sagitário e Leão, Fogo. E Câncer, Escorpião e Peixes, Água. Quando soube, não conseguia me imaginar nada senão água. Primeiramente pelo imaginário da infância, quando a felicidade estava quase sempre ligada à estar na cachoeira com meus pais, pescando com meu avô, nadando na piscina da casa da minha avó ou, claro, mergulhando no mar.
Contudo, mais do que lembranças especiais, as águas sempre me confortaram com a confiabilidade de um sentimento terno, seguro e comum. Desde muito jovem que encaro a vida como um rio. Aceito os fluxos, desvio caminhos, caio, sigo, sou retido e me faço represas temporárias. Ainda que me demore, sempre continuo avante. Não me recordo de algum momento que tenha voltado para trás. Alguns dirão que isso é orgulho, mas prefiro dizer que essa é a única escolha que sabe fazer um rio: ir.
E foi por isso que segui empurrando a bicicleta até conseguir acessar enfim o leito do rio que, bem, estava mesmo poluído. Sentei assim mesmo ali na margem, enquanto os últimos feixes de luz entravam por entre a densa floresta, e fiquei pensando por que nós, humanos, fazemos isso. Há quem diga que é possível medir a saúde de uma população pela qualidade de suas águas. E ver aquele córrego tão bonito, desfalecido, foi feito encarar a nossa própria doença.
Eu estava há poucos quilômetros do perímetro urbano de Belo Horizonte, já na fronteira com a cidade vizinha de Nova Lima, onde resistia um famigerado bar chamado Freud. Até 2010, ir até o Freud era uma certa grande aventura. O estabelecimento, que já foi notícia até mesmo no New York Times (!), sobreviveu durante anos nas profundezas da Mata do Jambreiro, donde só circulavam motoqueiros selvagens e ditos foragidos da lei. Com mesas na árvore, noites de rock, jazz e blues, Freud era um acalanto nas marginais da grande cidade, oferecendo um clima bem típico da Mata Atlântica. Quando a temperatura caia dos dez graus, o anfitrião homônimo do bar oferecia mantas para os clientes que compartilhavam narguilês e boas conversas sobre fugir da cidade. Era mesmo como uma experiência de fuga.
Belo Horizonte cresceu tanto que o progresso logo tomou Nova Lima e sua Mata do Jambreiro. Este curso d’água, de curioso nome Córrego Estrangulado, foi uma das vítimas desta expansão urbana que asfaltou montanhas e secou nascentes. Apesar de não ter morrido, o Estrangulado respira por aparelhos. Desde a sua cabeceira são dezenas de prédios e apartamentos que mal devem saber da sua existência. Quando corta o Freud o córrego já está doente. Poucos metros depois e ele se encontra com o Córrego do Mutuca – que também não vai muito bem – e seguem juntos como Ribeirão dos Cristais até o distrito de Honório Bicalho, onde desaguam no Rio das Velhas.
Assistir ao Estrangulado foi um estímulo para entender o caminho dos rios. Partindo da ideia de que a maioria deles devem ser contaminados durante seu curso, passei a pesquisar por suas cabeceiras e nascentes. Foi neste momento que voltei a passar horas estudando mapas, uma atividade que adorava fazer na infância, quando desenhava as coordenadas dos tesouros que escondia no quintal dos meus avós em Conselheiro Lafaiete.
A bicicleta se revelava uma boa companhia para varrer boas distancias, mas neste dia aprendi que não ter uma bicicleta também poderia ser mais prático. Hoje vejo que começar a correr em trilhas foi mais instintivo do que uma escolha meramente racional. Ainda que não pudesse ir tão longe, naquele primeiro momento, eu poderia acessar quase qualquer lugar. A corrida parece um tipo de superpoder que te permite deslocar pela paisagem com a intimidade da própria presença. Esse pensamento lógico facilitou a pesquisa de novas águas.
O que marcou, contudo, foi a descoberta do quintal de mim mesmo. Câncer com Escorpião, a água límpida de uma nascente que encontra a água turva de um mangue. Além da habilidade de fluir, as águas também têm essa possibilidade de sempre se regenerar. Eles podem até tentar acabar com um rio. Cobrem suas nascentes, desviam seus cursos, asfaltam seus caminhos. Mas nunca vão conseguir nos fazer parar de correr.