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Os Melhores Corredores Não Deixam Rastros

Os Melhores Corredores Não Deixam Rastros

Os melhores corredores não deixam rastros. Não sei exatamente o dia da minha vida enquanto corredor que li esta frase, mas ela surtiu um grande impacto na rotina de corridas que cada vez mais me empurrava para a esfera da performance. À essa altura eu já devia estar correndo cerca de cinco vezes por semana, sempre no asfalto, tentando diminuir o meu tempo nos sete quilômetros. Essa era a distância da primeira prova que me propus à participar, seis meses depois de uma corridinha especial, lá em Janeiro de 2016.

Penso que essa deve ser uma pergunta comum à todos os corredores e corredoras aí do outro lado – Por que estou correndo? – sobretudo quando é domingo, chove, faz frio, e você é a única pessoa a encarar a noite estranha da cidade, quando todas as razões e sinais te asseguram que o melhor a se fazer é ficar em casa, vendo o jornal, e se preparando para a dura rotina de trabalhos que vem pela semana. Por que estamos lá fora?

Penso que essa deve ser uma pergunta comum à todos os corredores e corredoras aí do outro lado – Por que estou correndo?

Uma das coisas que mais me encantam na corrida é justamente as múltiplas razões e emoções que nos fazem colocar o corpo em movimento. Seja para emagrecer, para respirar melhor, dormir melhor ou por alguma superação pessoal, a corrida sempre vai partir da quebra de uma certa zona de conforto. Afinal, por um certo mecanismo de economia de energia, nossa mente sedentária sempre vai sugerir que o melhor caminho é mesmo ficar em casa, onde há comida, trabalho e televisão, especialmente quando a paisagem lá fora sugere algum tipo de perigo.

Uma corrente de médicos, esportistas e poetas (claro!) vão garantir, contudo, que nascemos para correr. Tanto no sentido anatômico e biológico, à destacar pelo tendão de Aquiles, mas também pela maneira como o corpo reage bem aos estímulos de uma atividade física feita de forma adequada. Se não corremos é porque não desafiamos esse mecanismo de economia de energia. A procrastinação e o sedentarismo devem ser alguns dos pilares mais preocupantes da sociedade contemporânea, onde o acesso à “tudo” fica à alguns toques (de celular) de distância.

Não gosto de dizer que “comecei” a correr em Janeiro de 2016, porque sou adepto desta corrente que defende que nascemos correndo. Basta fazer uma busca rápida no imaginário para encontrar todas aquelas nossas atividades da infância, quando corríamos para encontrar os amigos, para trocar de quarto, para abraçar os pais ou para pegar uma fruta do vizinho. Ou mesmo mais recentemente, quando corremos para pegar o ônibus, para escapar da chuva ou para atravessar a rua, já que no Brasil é um pouco estranho esperar o sinal de pedestres parado.

Nascemos correndo, é verdade. Mas como sugere o célebre “Nascido Para Correr”, uma bíblia dos corredores publicada pelo norte-americano Christopher McDougall, progressivamente vamos deixando de correr em função dos estímulos desviantes de uma sociedade sedentária. Primeiramente somos coibidos por nossos pais e educadores, que insistem que não devemos correr ou que devemos ir mais devagar. E, mais tarde, somos cotidianamente desestimulados por uma rotina que já é “corrida” demais. Trabalhando cinco dias da semana, estudando e tendo outros possíveis afazeres domésticos e familiares, fica difícil imaginar mesmo um trotezinho na agenda de viver.

Naquela Noite Eu Saí Para Dar Uma Corridinha

Digamos que voltei a correr, portanto, em Janeiro de 2016, aos 27 anos, naquela corridinha um tanto especial pelas ruas do meu antigo bairro. Na urgência que senti de estar lá fora – e na falta de equipamentos adequados – sai para correr com um tênis de skate, que era a única atividade física que andava praticando nos últimos dez anos da minha vida quase sedentária. Apesar de ter vivido uma infância um tanto privilegiada, pedalando, jogando futebol, tênis e nadando, quando descobri o skate, lá pelos 14 anos, larguei tudo para me dedicar ao novo hábito e aos novos amigos.

Corri 4,8km em 30min, um pace de 6:16/km. Meus pés e joelhos não doeram tanto como falhava minha respiração. Apesar de um tanto ofegante, fazia tempo que não me sentia tão bem. Foi como uma reconexão instantânea com meu corpo e com a minha presença neste momento do tempo. Por onde andei? Me perguntava. E ainda que meu corpo inteiro fosse dor, eu só conseguia pensar que deveria continuar correndo todos os próximos dias da minha vida.

Com alguns intervalos para me recuperar, claro, assim recomecei. Corria um dia, descansava dois. Corria um dia, pedalava no outro. Corria um dia, pulava o outro. Corria dois dias seguidos, lidava com a dor. Com dois meses investi em um tênis de corrida, um tanto apertado (era o mais bonito da promoção) e intensifiquei os treinos. Minha companhia era o grande amigo e corredor Bruno Ferrari, que nessa época já devia correr ha uns cinco anos. Bruno me passou sábias dicas de respiração que foram valiosas para vingar o hábito.

Em abril do mesmo ano fiquei sabendo de uma prova de trail que aconteceria no Inhotim, um dos museus de arte contemporânea mais encantadores do mundo, que fica à poucos quilômetros de Belo Horizonte. Bruno e eu nos inscrevemos para a categoria de 7km e, juntos ou solitários, intensificamos nossa rotina de treinos. Meu objetivo, a partir de então, seria de reduzir ao máximo o meu tempo nesta distância. E, apesar da prova ser na terra – e com moderada elevação – nossos treinos eram todos no asfalto, sem tantas variações de ruas ou paisagens.

3 de Julho de 2016, oito horas da manhã, parti então para a minha primeira prova de corrida na vida. Éramos duzentos ou trezentos enfileirados no grande corredor formado por grades de ferro. Sentia frio, receio e meu coração já atingia um ritmo descomunal do que costumava sentir. Foi dada a largada e agora não conseguia pensar em mais nada senão em simplesmente correr e sobreviver. Se você acredita em astrologia, certamente deve saber que um evento como esse é muita emoção para um canceriano com ascendente em escorpião.

Larguei junto de um pelote com vinte outros corredores. Quando veio a primeira subida, ficamos em cinco ou seis. Quase chegando no topo, o primeiro se destacou e, assim que dobrei o cume, só pude avistá-lo se perdendo na paisagem de mato. Consegui olhar para trás e também não avistei mais ninguém. Estava sozinho. Ninguém na frente, ninguém atrás. E assim corri por mais cinco quilômetros até cruzar a linha de chegada com um segundo lugar geral dos 7k. Pace de 4:27/km.

Segundo Lugar Geral na primeira prova que competi, a Iron Runner Inhotim 2016.

Estava dada a largada para a temporada que me fez entender o porque de eu estar correndo. Durante um ano corri sete provas, todas entre 5 e 10km, entre percursos urbanos, montanhosos, chuvosos e desafiadores. Fiquei entre os primeiros colocados em todas elas, contando com um primeiro lugar geral em uma prova do Brou Bruto (emblemático personagem local) e fechando essa temporada com um terceiro lugar geral na mesma prova em que tudo começou, no Iron Runner 2017.

Contudo, mais que aprimorar a performance, todo este período me fez buscar as reais motivações e intenções que me faziam estar lá fora, correndo agora dia atrás de dia. E, por mais que celebrasse a vil satisfação de ganhar e subir em um pódio, o que realmente me motivava estava longe da estranha energia que sentia com os meus nervos e sentimentos saltando em descompasso enquanto competia. Ainda que os resultados sugerissem que eu deveria seguir nesta direção, nascia em mim uma grande inquietação de saber os reais propósitos de correr e da minha corrida.

Não que acredite que ganhar – ou ser mais rápido – não seja um propósito digno. Mas interromper a rotina de treinos fortes para encarar outros prazeres de correr me fizeram abrir um leque imensurável das narrativas que vivem dentro da vida corrida de cada um. Não precisamos ter um consenso ou um diagnostico pleno e definitivo. A corrida é um hábito social que deve ser livre de qualquer restrição, delimitação ou obrigação impositiva.

De toda forma, se “os melhores corredores não deixam rastros”, aos poucos fui entendendo que não corro para ser o melhor. Porque a corrida, para mim, tem se revelado um lindo instrumento de se contar histórias. Justamente com os rastros e as pegadas que ela marca, escreve e desenha na paisagem.

Correndo sozinho para pegar o Primeiro Lugar Geral da Prova Brou Casa Branca 2017 (Foto Raul Sampaio)