Cinco de Janeiro de Dois Mil e Vinte e cá estamos nós singrando as nossas vidas pelas estradas que cortam o Norte de Minas à medida que chuvas e tempestades vão se esvaecendo pelo retrovisor e o tempo se abre vagarosamente em revoadas de pássaros que deixam escapar os primeiros feixes de sol desta nova década que se anuncia no horizonte alaranjado. A vida sempre corre perigo na BR-381, o Cabo das Tormentas mineiro de quem busca a Bahia pelo caminho mais curto, mas logo estamos subindo a 116, depois a 418, aquela que vai margeado as serras e as pedras do caloroso Sertão até dar lá no quase litoral, Alcobaça, logo ali, e enfim Prado. São mais de quatorze horas para ver este mar – e essa é uma das explicações de ser tão fácil ficar na Bahia para sempre.
Estou aqui ao Sul de Porto Seguro pela primeira vez, mas faço companhia para Maya, minha sobrinha, Carol, minha cunhada e Fernando, meu irmão, que se dedicam à esta travessia pelo terceiro ano. Tanto em 2017 como em 2018 os três estiveram aqui para margear pedalando esta tal Costa do Descobrimento, território que teria chegado a frota de Pedro Álvares Cabral lá nos idos de 1500, quando deram notícia do “achamento” desta terra.
Também integra esta expedição nosso primo Gabriel, um dócil canceriano que aceitou o convite de fazer apoio a este escriba que vos escreve, já que decidi fazer o mesmo trajeto correndo – e os testes de carregar barraca, roupas e demais utensílios básicos não funcionaram muito bem. Os cerca de 150km que temos pela frente estão divididos em sete travessias mais pontuais, com pernoites em vilarejos e povoados um tanto especiais. Vou correndo com uma mochila pequena, carregando água, barras de cereal, frutas, castanhas e uma câmera para registros emocionais. Gabriel nos encontra em cada um dos povoados, conduzindo o carro, onde está minha barraca e roupas secas para os momentos do dia em que não estarei correndo.
Carrego comigo um texto que leio, releio, leio de novo e releio mais uma vez. A Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500 mas só conhecida publicamente em 1817. Historiadores consideram este documento como a “Certidão de Nascimento” do Brasil, já que traz valiosos detalhes sobre a terra que avistaram no dia 22 de Abril daquele fatídico ano. Além de oferecer uma rica paisagem do encontro dos portugueses com os nativos, o livro funciona para mim como um mapa. Afinal, a intenção agora é per(correr) com certa exatidão a Costa em que os (des)cobridores teriam ancorado três vezes, antes de seguirem caminho para as Índias. Uma história que a gente está tão cansado de saber, que na verdade nem sabemos direito de fato.
A Controversa Costa do Descobrimento
Existem diversas controvérsias relativas ao Descobrimento do Brasil. A primeira delas se refere ao próprio termo empregado para este histórico episódio do dia 22 de Abril de 1500. Como poderia ser “descoberto” um território que já estava recoberto de vida? Estima-se que pelo menos cinco milhões de pessoas já viviam aqui antes da chegada dos Portugueses. O termo “descobrimento” é no mínimo duvidoso. Além de reforçar o eurocentrismo do período, desconsidera vidas e culturas que já imprimiam identidade ao território.
Outra controvérsia seria relativa ao pioneirismo da frota de Cabral por estas bandas. Pelo menos dois outros navegadores europeus já teriam aportado no Brasil antes de Abril. Historiadores defendem que os espanhóis Vicente Yáñes Pinzón e Diego de Lepe, em expedições diferentes, estiveram no Nordeste do país em janeiro e fevereiro de 1500. Não teriam reivindicado as terras avistadas em função de saberem que seria de domínio português, segundo o Tratado de Tordesilhas. E há também um curioso relato da presença do português Duarte Pacheco Pereira, em 1498, que teria encontrado o Brasil durante uma expedição secreta encomendada pelo rei D. Manuel I.
Fato hoje é que Cabral não encontrou o Brasil pensando que seria a Índia – como muitos de nós aprendemos em casa ou na escola. Àquela altura já se sabia da existência de terras à Oeste, especialmente em função da célebre “descoberta” da América por Cristovão Colombo, em 1492. E, além do mais, esta era a maior expedição já enviada para singrar o Mar Tenebroso na história. Com treze embarcações, 1500 homens e gigantesco investimento, o Capitão-mor e seu coro de capitães deviam saber muito bem por onde estavam navegando.
Depois da partida de Portugal, em 9 de Março de 1500, a frota demorou 44 dias até avistar sua desconhecida terra. Nas palavras de Caminha, “Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.”
E segue, “Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos”.
Somando-se às controvérsias, há divergências sobre este rio onde lançaram âncoras em 23 de Abril, um dia depois de avistarem terra. Enquanto para alguns historiadores teria sido no Rio Cahy, pertencente à Cumuruxatiba, distrito de Prado – para outros historiadores, teria sido no Rio dos Frades, pertencente à Trancoso, distrito de Porto Seguro. Um conflito histórico que é acentuado dentro de escritórios de turismo e agências de viagens de cada um destes municípios.
De toda forma, os Portugueses só ficaram um dia ancorados na boca deste rio. “Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha”.
Este “bom pouso” seria a cidade conhecida hoje por Porto Seguro. “E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças”.
A segunda ancoragem, no dia 24, também só durou uma noite. “Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus”. Era dia 25 de Abril e os portugueses se aquedaram, enfim, poucos quilômetros ao norte de Porto Seguro, na praia batizada de Coroa Vermelha, hoje pertencente a Santa Cruz Cabrália.
Em Coroa Vermelha os Portugueses ficaram sete dias, interagindo com os indígenas e se abastecendo de água e mantimentos para a viagem que seguiria para a Índia, no dia 2 de Maio, um dia depois de erguerem uma cruz e celebrarem uma missa na presença dos nativos. A Carta de Caminha se concentra principalmente nestes sete dias – e desempenha um papel quase fotográfico sobre o território e seu povo originário.
A Costa do Descobrimento de Cabral, portanto, é compreendida desde seu primeiro possível ponto de ancoragem, na Barra do Cahy, passando pelo seu segundo-primeiro possível ponto de ancoragem, o Rio dos Frades, seguindo à norte até Porto Seguro e a praia de Coroa Vermelha.
Roteiro diferente pode ser encontrado na publicitária “Costa do Descobrimento” ofertada por agências de viagens, hotéis, guias turísticos e informações diversas espalhadas pela internet. Uma controvérsia um tanto comercial à se somar às demais controvérsias históricas (e também comerciais) que fundaram e inventaram a imagem e semelhança desta terra batizada de Brasil. Feitas todas estas considerações e ressalvas, podemos começar a nossa travessia.
“Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.”
Travessia Prado Cumuruxatiba, Entendendo a Maré (30,41km)
Acordei pensando na maré. Quatro da manhã em ponto, a natureza já estava acesa, duas dúzias de aves sobrevoam o camping anunciando que é 7 de Janeiro de 2020, estamos em Prado, Bahia, e é dia de começar a (des)ventura do (des)cobrimento. Maya, Carol, Fernando e Gabriel também se movimentam nas barracas ao lado. Assoviamos para garantir que estamos todos vivos e despertos para começar o dia. Não podemos nos demorar muito.
Já que a intenção é fazermos toda a Rota pela areia, dependemos totalmente da maré e da lua cheia ou nova. Ao longo de um dia, há dois momentos em que ela se encontra mais baixa – e dois momentos em que se encontra mais alta. Entre cada um destes pontos, o fluxo de água está descendo ou subindo. É importante que comecemos todas as nossas jornadas diárias no momento em que o fluxo esteja descendo. De tal maneira que, durante o percurso, encontremos ela em seu ponto mais baixo – e tenhamos portanto mais praia corrível e pedalável.
Boa parte desta costa Sul da Bahia é formada por falésias. Quando a maré está alta, o mar só deixa de fora uma pequena porção de areia fofa, que claramente pode prejudicar o desenvolvimento da corrida ou do pedal. Em pontos mais críticos, a praia pode simplesmente desparecer. E aí só é possível seguir nadando – o que não é muito aconselhável perto de pedras e encostas – ou então escalar as falésias e esperar. Como não temos estes cenários em mente, estudamos bem a tábua de marés para não ter erro.
Neste primeiro dia a maré mais baixa está marcada para 7h30. Saímos às cinco, portanto, para avançarmos ganhando espaço para correr e pedalar. À cada dia, a maré mais baixa acontece quarenta minutos mais tarde. Razão para comemorarmos hoje a saída junto do Sol e temperatura mais branda, já que a tendência é complicar nos próximos dias. Nem comecei a correr e já estou preocupado em ter que escalar falésias ou correr 21km debaixo de 40 graus. Na areia, claro.
Não precisaríamos começar a jornada daqui de Prado, exatamente, se a intenção é fazer exatamente a Costa do Descobrimento margeada por Cabral. Poderíamos começar de Cumuruxatiba ou mesmo da Barra do Cahy, onde teria sido a primeira ancoragem. Mas entendemos ser importante partir do centro da cidade que tem Cumuruxatiba e Barra do Cahy como distritos, para termos real dimensão do atual território.
Nestes trinta primeiros quilômetros de travessia, entre Prado e Cumuruxatiba, sinto um encantamento imenso embrulhado de um desconforto inquietante. Saber que percorro a Terra que remete à chegada dos Portugueses no Brasil é feito escavar o futuro dos nossos desassossegos. Quantas vidas foram perdidas, quantas tribos dizimadas e quanta natureza destituída. De 1500 pra cá a gente conhece bem os reflexos desta história.
São tantas as praias desertas e paradisíacas que cada curva guarda uma surpresa mais estonteante que a outra. Canto, choro, sorrio e corro com o (des)equilíbrio de uma emoção que jamais senti antes. Já tenho um momento predileto do dia, que se repete uma, duas, oito vezes: atravessar os rios que descem da floresta para vir tatear o mar. Impossível não lembrar de uma das célebres citações da Carta de Caminha, “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
Mal abri os olhos em Prado e já estou entrando aqui em Cumuruxatiba. Foi um sonho? Ou teria me despertado de algum pesadelo?
PRADO > CUMURUXATIBA Este percurso tem 30,4km considerando a saída do Camping Fruta Coco, no Centro de Prado e tomada de areia na Praia das Amendoeiras pela estrada BA-001. Todo percurso da Praia das Amendoeiras à Cumuruxatiba foi feito por areia. Em Curumuxatiba cruzamos o centro do povoado até atingir o Camping Aldeia da Lua Cheia, que fica na saída para Corumbau.
Travessia Cumuruxatiba Corumbau, Aqui Chegou Cabral (21,50km)
A história deste País começa aqui. Mas, claro, não a história desta Terra. Entre Cumuruxatiba e Corumbau está o Rio Cahy, o primeiro possível ponto de ancoragem da frota de Cabral. Foi se aproximando do Cahy que os portugueses avistaram o monte, batizado de Pascoal, e nomearam a terra como “Terra de Vera Cruz”.
Depois de uma noite dormindo à distância, no dia 23 de Abril eles se aproximaram e ancoraram próximo do rio. “Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens”.
O Rio desce forte em seu encontro com o mar. Só foi possível fazer sua travessia porque respeitamos mais uma vez o horário da maré. Ainda assim, à cada passo que dava adiante, dois outros se sucediam na direção do mar. Poderia dizer que foi feito um conflito, não fosse pela pureza e refrescância de suas águas.
Daqui em diante, é bem provável que todo cenário será o mesmo daquele da chegada portuguesa. Correndo, me imagino tanto vendo esta Terra pela primeira vez, lá de alto mar, como também me crio amanhecendo aqui, na areia, vendo mais de mil homens se projetando no horizonte, em 12 embarcações. Ambas visões são alucinantes.
CURUMUXATIBA > CORUMBAU
A travessia Curumuxatiba à Ponta do Corumbau guarda cerca de 27km. Nossa atividade, contudo, ficou em 21,8km porque o camping escolhido em Corumbau - Pousada e Camping Villa Segovia - fica antes da chegada no centro do povoado. Toda a travessia foi feita tateando o mar, com excessão de um breve ponto no quilômetro 4,5, onde se encontra uma grande falésia intransponível por areia. Neste trecho há uma trilha que saí logo depois da famosa Praia do Moreira. De toda a forma, vale a vista!
Travessia Corumbau Caraíva, Haja Areia (20,4km)
As aparências certamente enganam. Vista da ponta de Corumbau, Caraíva parece logo ali. E até é. Só não poderia imaginar que depois de 11km de felicidade eu teria mais 9 de areia solta.
Esta noite também não foi fácil. Quente, depois misteriosamente fria e depois quente de novo, fiquei me revirando na barraca pensando na turbulenta primeira noite da frota de Cabral na quase vizinha Barra do Cahy, onde dormiram no dia 23 de Abril de 1500,
“Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha.”
Enquanto subiam a costa, eram observados por centenas de nativos que habitavam o litoral. E ainda habitam. Muitos deles vivem no território desta travessia. Entre Corumbau e Caraíva está a Terra Indígena Barra Velha, da tribo Pataxó, presente na região desde o século XVIII.
Chego em Caraíva próximo de 10h, três horas depois de partir do camping, que fica a 6km ao Sul da Ponta de Corumbau. “Caraíva era outro lugar dez anos atrás”, escuto, por todos os lados. Dez anos. Ou, na realidade, cerca de 490 anos. Quando começou o processo de transformação e “progresso” de todo este vasto “chã e formoso” território costeiro do imposto país alcunhado de Brasil.
Conversando com Pacheco, nativo da vila, lembrei de um adesivo que via colado em muitas ruas de Nova York, lá pelos idos de 2014. Ele dizia, “I Can’t Afford to Love NY”. Brincando com o slogan da cidade – I Love NY – era uma constatação um tanto real de como custa caro amar aquela cidade.
Pacheco me disse que há 15 anos trocou um lote imenso em Caraíva por uma picape. Há poucos meses, o mesmo lote, sem nenhuma alteração, foi vendido por “mais de um milhão”. Na época a família dele dizia, “Quem vai querer comprar um quadrado de areia?”. Pois que hoje quase toda areia de Caraíva já tem dono. E pouquíssima dessa areia continua nas mãos dos nativos desta terra.
“Estão todos hoje em Nova Caraíva”, diz, olhando para o outro lado do Rio, onde cresce uma nova cidade, um tanto mais urbanizada. “Venderam – e agora ninguém vai conseguir comprar terra aqui de novo”, profetiza. O Rio divide passado de futuro. Pacheco, barqueiro, passa o dia no trânsito destes dois tempos.
Quando falo das mistas sensações que sinto em Caraíva é provável que seja porque é impossível não amar esse lugar. Primeiramente, para mim, por conta do estonteante encontro do Rio Caraíva com o mar. Pular no Rio e confiar na maré para subir – ou para descer – é um confidencial exercício de confiança com a natureza plena. E em segundo lugar, não menos importante, pelo seu clima rústico, místico e mágico, que mesmo em alta temporada consegue ser consideravelmente preservado.
Tenho um tio que diz que “O progresso vai vir. A questão é como ele vai vir”. É incrível que Caraíva esteja mudando sem perder muito de suas características urbanísticas e arquitetônicas. Mas é também bem preocupante que a terra não pertença mais ao seu povo nativo. O risco de virar apenas um caricato cenário de valores do passado é imenso.
É tudo bem complexo e estou longe de oferecer qualquer panorama completo ou solução. Mas não consigo deixar de manifestar, mais uma vez, tanto a felicidade como o desconforto de estar aqui, deste lado do rio, com os nativos indo dormir do lado de lá. A história deste país definitivamente não é para amadores.
CORUMBAU > CARAÍVA
A travessia de Corumbau para Caraíva guarda cerca de 14km. Corri 20,4km, contudo, em função de termos saído do Camping Villa Segovia, que fica 6km ao sul do centro de Corumbau. Logo depois da Ponta do Corumbau é preciso pegar um barqueiro para atravessar o Rio Corumbau (Tenha R$5 em dinheiro!) No quilômetro 11 (5, se tiver vindo da Ponta do Corumbau) começa o trecho de areia fofa que vai seguir impiedosa até Caraíva. Há a opção de pegar a estrada de terra que margeia o mar neste trecho. Me mantive em areia até o Camping Caraíva, no centro da vila.
Travessia Caraíva Curuípe, o Paraíso de Satu (10,54km)
Imagino que existam várias visões do que seja o Paraíso. E a história também me faz crer que o que é Paraíso para alguns pode ser um grande Pesadelo para outros. Na frota de Cabral que (des)cobriu esta terra vieram dezenas de degradados. Dois deles, Afonso Ribeiro e João de Thomar – condenados em Portugal – foram obrigados a viver no Novo Mundo para aprenderem da língua “desta gente” e saberem das possíveis riquezas do território.
Durante os dias em que permaneceram ancorados na Costa, o “Capitão-mor” os enviou seguidas vezes para dormirem com os nativos, com os quais se familiarizavam pouco a pouco. Apesar da boa acolhida que recebiam, quando anoitecia os locais os mandavam de volta para a orla, onde estavam os barcos.
Enquanto se preparavam para partir rumo às Índias, a “Relação do Piloto Anônimo” – outro valioso documento sobre o (des)cobrimento – conta, “…o Capitão desceu à Terra e mandou fazer uma cruz muito grande de madeira e mandou plantar na praia, e dessa mesma forma como já escrevera mandou deixar os dois degredados no dito lugar, os quais começaram a chorar, e os homens daquele terra os confortavam e demonstravam ter piedade por eles”.
Em contraponto, Caminha escreve para o rei: “Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida”.
Para os degradados, a Terra de Vera Cruz seria de fato uma condenação. Para os grumetes, que eram sucumbidos à uma rotina de abusos à bordo – e tidos como os primeiros brasileiros para muitos historiadores – uma libertação. Ou uma possível visão do Paraíso, que 460 anos depois contaminou outro navegante.
Esta é a história do Saturnino, ou “Satu”, pescador que fez fama ao construir sua casinha e batizar a praia de lagoas mágicas que separa Caraíva de Curuípe. Uma espécie de fuga também um tanto compreensível. Afinal, no caminho entre os dois povoados dá pra entender um tanto de coisa. Especialmente as lendas que diziam que o Paraíso seria exatamente aqui.
CARAÍVA > CURUÍPE
Este é o trecho mais curto de toda a Rota do (Des)cobrimento, com 10,54km, considerando a saída do Rio Caraíva até o final da Praia do Espelho. No quilômetro 6 (Mirante da Joacema) existe uma falésia intransponível por areia que guarda uma praia secreta. Contudo, existe uma trilha bem marcada com placas que logo retorna para o mar. Em Curuípe ficamos hospedados no querido Camping do Lota. Altamente recomendável.
Travessia Curuípe Trancoso (19,02km)
Passamos hoje de 100km per(corridos) desde Prado. Nos poucos dias que tive para me planejar para esta viagem, não fazia ideia que o desafio seria muito mais emocional do que físico. Correr tem sido a parte mais leve de todo o caminho. Difícil mesmo é pensar. E aqui, nesta vastidão de paisagem, acaba se pensando muito.
De Curuípe para Trancoso a Costa do Descobrimento muda bastante. Provável que sejam as praias mais bonitas desde então – num sentido fotográfico das coisas – e talvez por isso estejam aqui tantos hoteis, condomínios, resorts e restaurantes que constroem uma narrativa de uma Bahia muito longe da sua realidade histórica e social. Ainda que se preserve muito de certa arquitetura, devo dizer que é um choque.
Porque mesmo que o progresso tenha invadido Cumuruxatiba, Corumbau e Caraíva, todas antigas vilas de pescadores, de Curuípe à Trancoso o lance foi ainda mais voraz. O lance é tão voraz que Curuípe praticamente perdeu seu nome originário – e hoje atende pelo publicitário nome de Espelho. Apesar de Espelho prover da alcunha de uma fazenda local, aparentemente se vende melhor um território com sugestiva nomenclatura sobre a reflexividade de suas águas do que uma palavra do idioma tupi, que deu vida ao lugar.
Já Trancoso, que para alguns historiadores teria sido o ponto do primeiro desembarque de Cabral, no seu Rio dos Frades (em vez de Barra do Cahy), foi “conquistada” por hippies nos anos 1970. Contudo, este sossego nos alpes das falésias baianas durou pouco. Dos anos 2000 para cá, o crescimento da rede hoteleira de luxo foi tão vertiginoso que hoje “hippie” e “chic” andam de mãos dadas. Pode custar bem caro ser livre aqui.
Travessia do Rio dos Frades
Por sorte tivemos acolhidas imensamente especiais tanto em Curuípe quanto em Trancoso. Lá, com um café da manhã muito querido do amigo Vinicius, somada com uma estadia inesquecível no camping dos nativos Nilci e Lota. Aqui, na pousada e camping Cuba, do Aloísio. Quase um Comités de Defensa de la Revolución.
Temo um tanto os próximos pensamentos ao Norte, mas estes pontos de apoio dão grande fôlego para seguir. Estamos há poucos quilômetros do tal pouso seguro que encontrou Cabral. 101,8km desde Prado. Partiu quadrado.
CURUÍPE > TRANCOSO
A Travessia de Curuípe para Trancoso guarda cerca de 17,5km. Nossa atividade ficou em 19km, contudo, somando a chegada na orla da Praia dos Coqueiros, em Trancoso, até a Pousada e Camping Cuba, do grande personagem Aloísio. Próximo do 5km do trajeto está o Rio dos Frades, que também necessita de barqueiro para travessia. R$10 em dinheiro.
Travessia Trancoso Porto Seguro, à Caminho do Pouso Nada Seguro (22,93km)
Aqui jaz quase qualquer resquício originário da Costa do Descobrimento. Entre Trancoso e Porto Seguro a paisagem se resume à praias turísticas delimitadas por bares e restaurantes que tocam música contemporânea que vão de Beatles a Jota Quest. A sensação é que ficamos agora mais longe de encontrar vestígios ou respostas, ainda que fosse a vasta solitude desenhada em praias solitárias e imaginárias que pintavam desde então.
Hoje a maré baixa estava marcada para 13h no trecho desta travessia. Saímos 10h30 para pegar o mar descendo, como todos os dias, com a diferença que pegaríamos o sol a pino desde o primeiro passo dado. 23km debaixo de uma estrela incandescente alucinada. Enquanto corria tentando desviar de crianças, famílias, sombrinhas e castelinhos, fazia força para organizar meus pensamentos.
E nada. Feito uma luz opaca que ofusca os olhos quando miramos o Sol, a paisagem deste caminho embrulhou meus sentimentos de tal maneira que tudo que consegui fazer foi correr mais rápido que os últimos dias. Uma meia maratona embaralhada na confusão dos sentimentos de mim mesmo. Tão logo chegamos nas praias de Arraial, já estamos pegando um beco estreito que leva à balsa que cruza para Porto Seguro.
Estou aqui em Porto Seguro, colado no cais, de onde venta sueste. A brisa me transporta para onde vim, o que vi e o que não vivi. Sinto falta de casa, mas me parece uma jornada longa demais voltar. Não acabou. São mais 20km costa acima. É entre Porto Seguro e Cabrália que a invenção deste país começa – e a história desta terra muda. 34 graus de sensação térmica esperada para amanhã. Sigamos.
TRANCOSO > PORTO SEGURO A Travessia de Trancoso até o Centro de Porto Seguro é feita em cerca de 16km. Nossa atividade ficou em 22,93 por considerar a saída da Pousada e Camping Cuba, em Trancoso, e por nos hospedarmos no Hotel e Camping Mundaí, 5km ao Norte do Centro de Porto Seguro. Entre Arraial e Porto Seguro é preciso pegar uma balsa. Custo livre.
Travessia Porto Seguro Santa Cruz Cabrália, a Invasão (19,05km)
Da areia, correndo, avisto a cruz. Não é exatamente a cruz, mas é a representação daquela cruz construída para a missa celebrada um dia antes da partida dos portugueses para as Índias. Seguindo as informações da Carta de Caminha, teria sido aqui, nas proximidades do Rio de Santa Cruz, o ponto onde as embarcações ficaram ancoradas para se abastecer na costa do Brasil. O terceiro porto. Onde viveram sete dias em harmoniosa convivência com os indígenas e onde ficaram dois degredados e dois grumetes.
Desvio de mesas e barraquinhas montadas na areia, cuido para não bater a cabeça em uma fileira de sombrinhas multicoloridas e vou cruzando por dentro de um bar até chegar em uma área de estacionamento, onde estão duas cruzes. A primeira, de madeira, não parece chamar tanto a atenção. Está entre carros estacionados e não traz nenhum tipo de sinalização. A segunda, contudo, um tanto imponente e construída com material mais robusto, tem uma pedra de mármore preta timbrada com as seguintes palavras:
“Para celebrar os 500 anos do Brasil, na presença do Excelentíssimo Senhor Jorge Sampaio Presidente da República de Portugal, e do Excelentíssimo Senhor Fernando Henrique Cardoso Presidente da República Federativa do Brasil, do Excelentíssimo senhor Senador Antônio Carlos Magalhães, Presidente do Congresso Nacional, e do Excelentíssimo Senhor Cesar Borges, Governador do Estado da Bahia, fez-se erguer este marco, no lugar do encontro entre nativos da terra e navegadores portugueses de 1500. 22 de abril de 2000. ano 500 do Brasil”.
Muitas dúvidas. A primeira: Celebração? Penso até ser possível celebrar este primeiro encontro entre a frota de Cabral e os nativos, um tanto caloroso e sem nenhum conflito físico. Mas celebrar os 500 anos – com esse quórum – é forçar a barra. Outras dúvidas: se a celebração acontece no dia 22 de abril, não seria mais didático prestar tal homenagem na Barra do Cahy? Ou mesmo no Rio dos Frades? Como amar conscientemente este país? Devemos fechar os olhos para sua história? É possível reescrever a sua história?
Seguimos à Norte, cruzamos o Rio de Santa Cruz e poucos quilômetros se revelam até o final da areia, o fim da linha, o fim de todas estas travessias, o Rio Camurugi. Uma rajada de fraqueza quase me derruba no chão. Misturo castanha-de-caju com paçoca e água na expectativa de me conter. A visão fica turva e vou correndo trôpego, entre a luz e certa escuridão. Me emociono e começo a chorar.
Tendo lido e relido tantas vezes esta Carta, impossível não lembrar da objetividade apaixonada que invadiu os últimos parágrafos de Caminha, quando se preparavam para deixar as imediações de Coroa Vermelha, depois de uma semana ancorados e em contato com os indígenas. Algumas das últimas palavras escritas pelo escrivão, já que viria a morrer poucos meses depois, em dezembro, quando já estavam nas Índias.
“Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.”
Também impossível não lembrar da visão de um líder indígena, Ailton Krenak, quando perguntado sobre o (des)cobrimento. “Tinha gente aqui com história, alguns desses povos com história de dois mil anos (…) Quando os brancos chegaram, eles foram admitidos como mais um na diferença. E se os Brancos tivessem educação, eles podiam ter continuado vivendo aqui no meio daqueles povos e produzido outro tipo de experiência. Mas eles chegaram aqui com a má intenção de assaltar essa terra e escravizar o povo que vivia aqui. E foi o que deu errado.”
Depois de cento e cinquenta quilômetros curvando as linhas do mar tateando as ondas que quebram vagarosas na areia, dormindo todas as noites com o corpo no chão e correndo sempre com os pés na Terra, calçados e descalçados, os olhos mirando os horizontes e os infinitos, as falésias e as encostas, as pedras e as matas, os tantos sonhos que não vivemos e os outros pesadelos que nos amanheceram, chegamos.
De Prado a Santa Cruz Cabrália, de Barra do Cahy até Coroa Vermelha, cruzando dez, vinte, quarenta rios, confiando o destino nas marés, Cumuru, Corumbau, Caraíva, Curuípe, Trancoso e as tantas vidas, vilas e vielas do caminho. Uma imensidão de vistas e visões do que este país é e também do que poderia ter sido. Daqui vejo Santo André, do outro lado Rio. Daqui vejo que o Brasil é selvagem demais para ser amado ou compreendido.
“E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo (…) deste Porto Seguro da vossa jlha de Vera Cruz oje sesta feira primeiro de mayo de 1500”. Santa Cruz Cabrália, Brasil, quinze de janeiro de 2020.
Caralho , muito foda mano. Lindo mesmo, parabéns cara.